Adormeci
na verde margem
à sombra da ponte
com o meu amigo
Ao despertar
nem sombra nem rio eram
os mesmos
nem eu nem meu amigo
os mesmos
nem verde a inundada
margem
Luiza Neto Jorge
In “poesia”, Assírio & Alvim
As Ondas, Virginia Woolf
no tempo há a nobre clemência da proporção
Com generosidades para lá do acreditar
(embora carne e sangue o acusem de coacção
ou mente e alma o condenem por decepcionar)
os seus caminhos não são racionais nem irracionais,
a sua sabedoria anula conflito e entendimento
- os saaras têm os seus séculos; dez mil
dos quais são mais pequenos do que a rosa para um momento
há tempo para rir e há tempo para chorar –
para a esperança para o desespero para a paz para a saudade
- um tempo para crescer e um tempo para morrer:
uma noite para o silêncio e um dia para cantar
mais do que tudo (como os teus mais do que olhos
me dizem) há um tempo para a eternidade
E. E. Cummings
In “livrodepoemas”, Assírio & Alvim
Trad. Cecília Rego Pinheiro
Corto viaggio sentimentale, capriccio italiano (27)
venho dormir junto de ti
e o meu corpo é uma coisa diferente
do que se vê ou toca ou sente;
é, fora de mim, essa coluna de ar onde respiro,
olhos que beijam o teu corpo exacto,
as muitas mãos que dobram o teu rosto.
Um deus que dorme, um deus que dança, e mais
que um mero deus, o breve amor do tempo.
António Franco Alexandre
In “Quatro Caprichos”, Assírio & Alvim
Três dias para que o corpo se habituasse ao peso do sol. As costas curvadas e os braços como pêndulos soltos, roçando o chão em compassos apertados. Trazia os olhos secos como no dia em que nasceu, mas não se importava. Nunca o arrependimento teve coragem suficiente para detê-lo do que quer que fosse. Caminhava curvado, arrastando-se sobre a terra, mas caminhando. Curvado. A tesoura ainda no bolso… no coração, a imensidão do céu sobre o planalto, e no pensamento, o sonho cada vez mais próximo de rasgar definitivamente o horizonte.
ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte
vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer - vai por esse campo
de crateras extintas - vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite
deixa a árvore das cassiopeias cobrir-se
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo – deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me
que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna - o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite
não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira - não esqueças o ouro
o marfim - os sessenta comprimidos letais
ao pequeno almoço
Al Berto
In “Horto de Incêndio”, Assírio & Alvim