"Portrait of woman" »» Pablo PICASSO
O meu marido deixou-me, trocou-me há doze anos por uma solteirona de peito avantajado. Os meus filhos emigraram, partiram à procura de uma vida melhor. Vivo sozinha, com a minha máquina de costura. Companheira de longos anos, nunca me enganou. Por isso é com ela que faço amor, um amor de linhas e cores por onde me perco e agonizo. E é engraçado como me sinto um pedaço de tecido mutilado pela vida, como sangro a cada fio de linha que me penetra à força, como não passo de uma história bordada pelas mãos da circunstância.
O meu bisavô era rico, mas o meu avô quis casar com a minha avó e ele deserdou-o. Tenho primos juízes mas sou filha de carvoeiros. Sou pobre, mas muito limpa. Não ouço bem, tenho aparelho. Vivo com medo que caia. Vivo sempre com medo. Medo, medo, medo… À noite choro. É como rezar. As dores escorregam pelo rosto cansado até se perderem por entre os poros gastos das minhas rugas, até se perderem… Daqui a dez anos faço setenta anos, daqui a dez anos já posso morrer. Morro sem conhecer a felicidade como a minha mãe. Como a minha mãe que era carvoeira mas muito limpa. Às vezes jogo na lotaria, mas a sorte nunca sai. E eu espero, espero e torno a esperar até já não saber bem pelo quê. Até já não saber se a minha máquina de costura me sorri ou me suborna.
O meu marido deixou-me, trocou-me por uma solteirona de peito avantajado. Os meus filhos emigraram, vivo com uma máquina de costura, a quem pago o aluguer da casa e da vida. Na realidade sou sua escrava, dependo do óleo dos seus pedais, da força das minhas pernas que me fazem andar, andar, andar… Dependo das mãos da circunstância e é engraçado como me sinto um pedaço de tecido mutilado pela vida, como sangro a cada fio de linha que me penetra à força. E é engraçado como sofro em silêncio, como ninguém vê ou pressente a dor de ser existida. É engraçado.
Ah ahah ahahah ah ahah ahahah ahah. Ah ahah ahahah ah ahah ahahah ahah ah ahahah.
ps. obrigado Agripina pela partilha.
Já tinha ido espreitar e achara piada ao texto.
Uma boa partilha.
Agripina, gostei muitíssimo do texto, forte e de uma ironia corrosiva... ui, doeu.
Beijos
:) Obrigada